Foram 13 dias em La Habana, vividos entre o primeiro e o segundo turno das eleições brasileiras de 2010. Estar em Cuba foi a realização de um sonho e pretendo dividir minhas impressões neste blog!

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Gambiarras e criatividade

Se eu puder especificar o grande aprendizado que os dias em Cuba me proporcionaram, foi a noção de que se pode viver com menos. Depois de morar em Berlin por 12 meses, os 13 dias em Cuba me deram a clara noção do supérfluo. Eu tenho mesmo há algum tempo feito um exercício interessante: procuro encontrar em cada produto no mínimo 2 utilidades. A caixinha de leite longa vida me serve de carteira de dinheiro e já funcionou como leque usado num show em João Pessoa. Enfim, a carência em Cuba é generalizada. Reciclar, reutilizar e improvisar são verbos indispensáveis. Não há excesso de sacolinhas plásticas, por exemplo, nem disperdício de qualquer espécie. Desde que voltei da Alemanha vou ao supermercado com sacolas de tecido ou napa e me sinto sempre figura única, apesar do incentivo de vários estabelecimentos. Em Habana se o consumidor vai às compras sem sacola, vai voltar para casa com as compras nas mãos. O resultado disso é também a limpeza das ruas e das águas da baía. Lembro-me bem da poluição da baía de Guanabara e do mal cheiro característico que se sente quando se passa pela ponte Rio-Niterói ou pela linha vermelha.
Observei que com a falta dos botões de um fogão velho, a mulher usava um alicate para ligar e desligar o gás: carência e improviso. Um pedaço grande de plástico, substituiu um vidro quebrado. Uma pá quebrada foi concertada com tiras de tecido. Cartas de brincadeira infantil (tipo jogos do Poquemón), serviram como senhas dadas aos que estavam na fila no ponto de ônibus: as pessoas que possuíam as cartas, viajaram sentadas. Gambiarras e operações no estilo “Magaiver” revelam a criatividade de um povo. Entretanto, torna-se impossível analisar essa situação sem considerar o embargo econômico sofrido pelo país e que reflete no cotidiano das pessoas comuns. A degradação das construções de Habana Vieja é evidente, na medida em que há dificuldades para a aquisição de materiais para a construção civil. Isso incentiva o desvio de sacos de cimento, por exemplo, atitude que me foi citada por um operário. O boicote norte-americano é no mínimo vergonhoso e deveria ser uma bandeira de luta constante dos que defendem a liberdade. Não se pode pensar em Cuba sem considerar o boicote alinhado pelos EUA...

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

“Invasão” de um ritual de Santeria

Eu estava com Lemay, um jovem diretor de escola primária que conheci em Habana quando ouvimos sons estonteantes de tambores vindos de um prédio residencial. Eu o convidei pra subir e espiarmos. Lemay a princípio não topou, dizendo que era uma casa particular. Eu insisti e ele cedeu. Devo dizer que me vejo doida ao som de tambores. Subimos as escadarias do casarão em Habana Vieja seguindo o tambores alucinados. No segundo andar, numa sala que aparentava minúscula por conta do número de pessoas, nos deparamos com um ritual de santeria. A porta estava aberta e uma das mulheres que dançava fez um gesto nos convidando para entrar, ao mesmo tempo em que apontou uma bacia no chão onde petálas de rosas brancas e ervas boiavam na água. Nos mostrou como deveríamos fazer, então bezuntamos a nuca com o líquido e entramos na roda. Havia um passo característico e uma vez na roda era preciso dançar. Do lado oposto da sala um rapaz negro se jogou no chão e como uma cobra rastejou no meio da roda. Cantava-se uma frase repetidamente, como um mantra ao som dos tambores. Eu procurava acompanhar, curiosa. Sentia cheiro de pinga no ar e observei que o moço no chão estava todo molhado de cachaça. Ele atravessou a sala, rastejando, vindo em nossa direção. Nós ficamos bem próximos da porta. O rapaz em transe se contorcia e era muito magro, de cabelos rastafari. Ele se levantou e adentrou uma outra porta. Segundos depois ele retornou portando no topo da própria cabeça uma cabeça enorme de porco, verdadeira! Eu senti um misto de entusiasmo e nojo, pois ainda tinham pedacinhos de carne pendurados na parte do pescoço cortado. Ele dançava e foi recebido por uma mulher negra que dançava alucinadamente com ele, possuída, em transe. Lemay olhava pra mim e sorria; desajeitado, ele seguia o ritmo dos tambores, talvez em minha consideração. O rapaz com a cabeça de porco provocou um susto numa jovem que saiu afoita da sala. Nós saímos junto, ainda sentindo o ritmo forte dos tambores do ritual de santeria.
No quesito religioso Cuba tem muitas semelhanças com o Brasil: heranças africanas fortes. Entidades como Iemanjá, Óxum e Ogum também existem por lá. As correntinhas de missangas coloridas tem os mesmos significados que as das religiões africanas brasileiras (ao menos o azul claro de Iemanjá, estou certa). Observei também a existência de oferendas em encruzilhadas. Na praça da catedral de Habana, duas velhas negras vestidas de branco leem a sorte de turistas dispostos a pagar 6 CUC. Elas portam charutos gigantescos, maiores do que os grandes que eu trouxe. Parecem nossas baianas do Pelourinho.
Linko esse pequeno vídeo encontrado no youtube pra deixar uma idéia do que os tambores cubanos fizeram comigo naquela tarde de “invasão” com Lemay:

sábado, 27 de novembro de 2010

As moedas cubanas e os gineteiros

O sistema monetário em Cuba é dividido: uma moeda para os cidadãos cubanos (o peso) e outra para os visitantes, os chamados pesos convertibles, ou simplesmente CUC. São moedas e notas diferentes e o turista que se vale de uma casa de câmbio (as cadencas) pode trocar dolares ou euros apenas por CUC, mas isso não impede seu acesso ao dinheiro cubano no cotidiano. Essa divisão das moedas, na minha opinião, causa um mal danado à sociedade. Primeiro por conta do disparate dos valores: um CUC vale cerca de 27 pesos cubanos ou 1,23 euros. Existem lojas só de produtos em peso cubano, outras só em CUC e ainda as mistas. Os produtos em peso são subsidiados pelo estado, como os das feiras e vendas tipicamente cubanas, daí nada mais justo que sejam vendidos em peso e não em CUC. O turismo é atividade fundamental na economia da Ilha: há ônibus, restaurantes, lojas de artesanato que aceitam apenas o CUC e tantos outros em que se paga só em peso. Isso, de alguma forma, divide os ambientes e restringe  o acesso dos cidadãos aos estabelecimentos em que se para em CUC. Um exemplo: a passagem do ônibus de turismo, aberto em cima, custa 3 CUC, enquanto que os cidadãos comuns pagam 1 peso pela passagem nos ônibus comuns. Eu fui a praia do leste de ônibus cubano e admirei que a falta de cobradores não estimula o não pagamento da passagem: as moedas são depositadas numa caixa de acrílico transparente, logo atrás do motorista. Admiro isso, a confiança no cidadão. Muitos dos novos ônibus são de frabricação chinesa.
Mas voltando ao sistema monetário, eu percebi que o disparate do câmbio entre o peso e o CUC, estimula os malandros a conseguirem de qualquer forma, arrecadar quantias em CUC. Não há violência como assaltos a mão armada. A grande arma dos que desejam tirar vantagem é a lábia. Eu me considero muito prevenida, atenta a situações de risco e nos meus primeiros dias, caí mais de uma vez no chamado conto do vigário. Com boa conversa e simpatia, a pessoa seduz e cria um enredo atrativo, que provoca sentimentos de piedade ou coisa que o valha. Eu já havia sido levemente avisada sobre isso e depois que identifiquei a estratégia dos “gineteiros”, como são chamados os malandros cubanos, deixei de ser tão maleável e simpática.
Na visita à Universidade de Habana, um deles se aproximou perguntando as horas. Minha resposta entregou minha “estrangeirice.” E aí o papo se estendeu, culminando com o pagamento da conta por mim e a doação de uns trocados em moedas. Tudo pago em CUC, claro. O homem era jovem, de seus 40 anos e se dizia professor universitário de História, como eu: que coincidência! Posteriormente eu conclui: qualquer cidadão cubano conhece muito bem sua história e era fácil pra ele dissimular a profissão com os conhecimentos que teve na escola. Eu parto do princípio de que as pessoas estão sempre dizendo a verdade e nesse caso não foi diferente. Eu não quero julgar as atitudes dos gineteiros cubanos, nem dos malandros cariocas, nem de ninguém que queira tirar vantagem por alguma razão. Mas é possível perceber nisso certa quebra de dignidade e eu tive a impressão de que a existência de moedas diferenciadas é fator contribuinte pra isso. Ao menos a arma é menos violenta, sei lá. Na minha adolescência jovens apontavam revólveres para outros com o intuito de roubar seus tênis de marca. Em Habana a arma é a lábia, a conversa mole, a estratégia do convencimento através de um enredo forte e apelativo.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A aterrissagem e os chavões sobre Cuba

Foi no espaço virtual que consegui um guia caseiro, onde encontrei a pensão do Nelson. Os cidadãos cubanos não tem permissão para hospedar estrangeiros em suas casas: essa é uma prática ilegal. Desde o princípio decidi que não me hospedaria em hotel, lugares "artificiais" em se tratando das minhas intensões de viagem: eu gostaria de ser menos turista possível. Então, no guia da amiga de uma comunidade virtual, soube das casas de aluguel, onde se alugam quartos para turista e em contrapartida os donos devem pagar um imposto para o Estado. Liguei para Habana e fiz a reserva para os 13 dias. O quarto era espaçoso, com banheiro privativo, uma pequena geladeira, ventilador e ar condicionado, que aliás nem usei. Eu levei um radinho de pilha e um livro como companhia: as cartas trocadas entre Hanah Arendt e Mary Mac Carthy por anos a fio (do final dos anos 1950 até a morte da filósofa alemã). Obviamente Cuba foi mencionada.
A calle Merced fica em Habana Vieja e o número 14 ébem próximo do mar, de onde se avista o porto e pode-se percorrer um passeio. Gosto de andar quando viajo e a localização da pensão não poderia ser melhor. Cheguei antes do anoitecer. Foi um horário escolhido, já esse é o melhor momento do dia, quando a inclinação do sol na Terra provoca luzes deliciosas para se observar. Troquei alguns euros por CUC, que é a moeda dos estrangeiros logo na chegada ao aeroporto. Muita gente desembarcando com malas e pacotes abarrotados. Cheguei em Habana via Lima, pela Taka airlines. Muita gente esperando no aeroporto também. Preenchidos os papéis na alfândega, sai pelo portão de "nada a declarar." Desejei pegar um ônibus, mas não havia linhas recorrentes e o jeito foi gastar 25 CUC até Habana Vieja de taxi, atravessando toda a cidade. Adoro conversar com os taxistas e mesmo com meu portunhol me atrevi direitinho. Observei a cidade florida, verde; as propagandas do regime e a "limpeza" visual: sempre abominei os letreiros exagerados e as placas coloridas nas fachadas das lojas, típicas dos países capitalistas. Fiz do motorista um leve guia turístico; passei e conheci ligeiramente alguns pontos. O carro era bastante novo e de propriedade do estado. Há os amarelos, privados e em fase de experimentação. Aliás, sequer andei nos carangos antigos, que diga-se de passagem, dão um fedor horrível de combustível queimado à cidade e também aquela nuvem de poluição características das cidades grandes com carros demais, o que não é o caso de Habana.
Eu embarquei no Rio e no Peru juntei-me no voo com um grupo familiar de São Paulo. Gosto de viajar "solita" por diversos motivos. Um deles é que posso me fingir de arrogante e ouvir as conversas alheias ou interagir na boa com as pessoas. Nesse caso me portei da primeira forma. Ouvindo os diálogos, percebi que as jovens eram garotas moderninhas e abastadas, portando um tom superior típico dos paulistanos cheios de grana. Eis que depois da aterrissagem, no caminho para pegar as malas, uma delas diz: "Uau, existem escadas rolantes por aqui!"... Nínguém riu. Não era uma piada. Eu levantei os olhos como quem diz: "Oh, céus! Eu não estou ouvindo isso."
Foi exatamente sem esse espírito viciado e estereotipado sobre Cuba que eu desejei viajar.
(Foto da fachada da casa do Nelson com a identifição: Arrendador Divisas.)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Quando tudo começou...

Tudo se intensificou quando não consegui retirar o dinheiro que me era de direito da conta do FGTS: 3 anos sem carteira assinada. Foi entre o final do doutorado e o início da minha institucionalização. Era o ano de 2009 e como contava com esse dinheiro para a minha subsistência, a recusa do saque me conduziu à decisão, logo após a notícia positiva de que receberia uma bolsa de estudos na Alemanha: quando eu voltar, essa grana me levará à Cuba! Já era um sonho, sim. Conhecer o cotidiano de um país cujo sistema inflama tantos debates: ou se é contra, ou se é à favor, vítima de discordâncias históricas: eu precisava ver com meus próprios olhos, julgar com subsídios próprios, enfim.